Para
atender aos convites culturais viajo sempre sozinha e opto por ficar, também,
sozinha em quarto de hotel. Esta crônica a escrevi em Goiânia, Goiás, quando lá
estive, em novembro de 2012, para a premiação da obra Roteiro da liberdade, com
o Premio Interarte, melhor livro de poesia 2012.
Em
quarto de hotel há sentimentos aflorados em minha carne, em meu coração, em meu
cérebro. Respeito, gratidão e generosidade, estruturam lembranças que rondam
pincelando as frias paredes, tingindo-as de importâncias que não couberam na
bagagem, mas que foram abrigadas pelo coração para garantir sobrevivência.
Chove e
a laje do edifício impede que o frescor rodeie a clausura para abençoar-me com
a refrescância das fervilhantes minhocas de meu banco de memórias. Apesar da
proposta existencial a janela de blindex impede que os contatos sejam
estabelecidos. Apenas vejo, como se não tivesse outros sentidos, olfato, tato,
audição, por exemplo. Apenas vejo. Nuvens que disputam brechas num discreto
contorcimento por ordem do vento; pássaros que brincam de suas travessuras nas
folhagens e galhos de arvores impecavelmente verdes. Apenas vejo. Nada ouço. Sinestesicamente
imagino o cheiro, o som, o clima. E penso: devanear é preciso.
Cidade é
feita de gente, de obras arquitetônicas e de cachorros. Pessoas com mãos vazias,
sacolas, malas, mochilas, aparecem, passam, somem. Desembarcam, embarcam, em automóveis,
caminhões, motos, bicicletas. Cachorros são alguns dos animais que integram à
cena. Bichos que vadiam soltos talvez perdidos ou abandonados. Penso que eles
devem ter muita fome porque vasculham as lixeiras, as caixas depositadas nas
calçadas, os pés das árvores dos passarinhos. Os prédios se fazem de pedras
esculpidas.
A tarde
se faz em chuva mansa, aquela que rega pensamentos, traz saudade, inspira céu e
terra. O vidro da janela blinda, desconfigura a realidade, promove a conexão virtual.
Há duas
alternativas, abrir ou manter fechada a janela de generoso espaço de vidro
transparente que propõe a conexão com o mundo La fora.
E chega
a noite trazendo consigo um manto tecido de curiosidades por mim. Observo as lâmpadas
de iluminação publica e já não vejo a chuva, nenhum chuvisco. A chuva passou.
Decido
abrir a janela. Invisto com o cérebro, puxo a inteligência para estudar sobre a
arte de abrir aquela janela. Matuto sobre a partezinha retangular de metal na
base central do vidro. Exercito a paciência. Enfim descubro o processo para
destravamento vertical de dois pinos, e, finalmente os ferrolhos são destravados.
Afasto as duas folhas de blindex. Sensação de encontro com a vida real. Liberdade,
liberdade, liberdade. Concluo que liberdade esta no vento. Besouros vivem a
liberdade, invadem meu quarto de hotel.
Os pássaros
já não cantam, eles emudecem no período noturno para autoproteção. À noite os pássaros
repousam seus segredos em auspiciosos dormitórios-esconderijos.
Minhocas
fervilham em mim. Minhocas não dormem, fermentam a fantasia. Tenho substratos
para o pensamento ensaiar a imaginação e acelerar a criatividade.
Do livro "MITOLOGIA DE UMA BUGRA"/Vanda Ferreira/ no prelo
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