quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

QUARTO DE HOTEL


Para atender aos convites culturais viajo sempre sozinha e opto por ficar, também, sozinha em quarto de hotel. Esta crônica a escrevi em Goiânia, Goiás, quando lá estive, em novembro de 2012, para a premiação da obra Roteiro da liberdade, com o Premio Interarte, melhor livro de poesia 2012.

Em quarto de hotel há sentimentos aflorados em minha carne, em meu coração, em meu cérebro. Respeito, gratidão e generosidade, estruturam lembranças que rondam pincelando as frias paredes, tingindo-as de importâncias que não couberam na bagagem, mas que foram abrigadas pelo coração para garantir sobrevivência.

Chove e a laje do edifício impede que o frescor rodeie a clausura para abençoar-me com a refrescância das fervilhantes minhocas de meu banco de memórias. Apesar da proposta existencial a janela de blindex impede que os contatos sejam estabelecidos. Apenas vejo, como se não tivesse outros sentidos, olfato, tato, audição, por exemplo. Apenas vejo. Nuvens que disputam brechas num discreto contorcimento por ordem do vento; pássaros que brincam de suas travessuras nas folhagens e galhos de arvores impecavelmente verdes. Apenas vejo. Nada ouço. Sinestesicamente imagino o cheiro, o som, o clima. E penso: devanear é preciso.

Cidade é feita de gente, de obras arquitetônicas e de cachorros. Pessoas com mãos vazias, sacolas, malas, mochilas, aparecem, passam, somem. Desembarcam, embarcam, em automóveis, caminhões, motos, bicicletas. Cachorros são alguns dos animais que integram à cena. Bichos que vadiam soltos talvez perdidos ou abandonados. Penso que eles devem ter muita fome porque vasculham as lixeiras, as caixas depositadas nas calçadas, os pés das árvores dos passarinhos. Os prédios se fazem de pedras esculpidas.

A tarde se faz em chuva mansa, aquela que rega pensamentos, traz saudade, inspira céu e terra. O vidro da janela blinda, desconfigura a realidade, promove a conexão virtual.

Há duas alternativas, abrir ou manter fechada a janela de generoso espaço de vidro transparente que propõe a conexão com o mundo La fora.

E chega a noite trazendo consigo um manto tecido de curiosidades por mim. Observo as lâmpadas de iluminação publica e já não vejo a chuva, nenhum chuvisco. A chuva passou.

Decido abrir a janela. Invisto com o cérebro, puxo a inteligência para estudar sobre a arte de abrir aquela janela. Matuto sobre a partezinha retangular de metal na base central do vidro. Exercito a paciência. Enfim descubro o processo para destravamento vertical de dois pinos, e, finalmente os ferrolhos são destravados. Afasto as duas folhas de blindex. Sensação de encontro com a vida real. Liberdade, liberdade, liberdade. Concluo que liberdade esta no vento. Besouros vivem a liberdade, invadem meu quarto de hotel.

Os pássaros já não cantam, eles emudecem no período noturno para autoproteção. À noite os pássaros repousam seus segredos em auspiciosos dormitórios-esconderijos.  

Minhocas fervilham em mim. Minhocas não dormem, fermentam a fantasia. Tenho substratos para o pensamento ensaiar a imaginação e acelerar a criatividade.

Do livro "MITOLOGIA DE UMA BUGRA"/Vanda Ferreira/ no prelo